Sobre o senso de desatualização constante em tecnologia
Olá!
Neste texto, eu gostaria de organizar algumas ideias e discutir um pouco sobre soluções reais e factíveis para problemas estruturais da área de TI.
Conceitos fundamentais
Para esse texto fazer sentido, eu preciso que você entenda alguns conceitos, como:
- O que é pensamento sistêmico e seus arquétipos;
- Contexto pós-pandemia;
- Porque a TI esquece do passado;
Com isso dito, continuemos.
Modelando o problema como algo multi-variável
Abordando o assunto do título do ponto de vista do pensamento sistêmico, a minha discussão aqui é baseada também na administração e não necessariamente somente em ciência da computação.
Vamos partir do básico. Um processo é algo que transforma um input em um output:
Essa abstração é o suficiente para modelar alguns cenários no mundo real, na qual cada causa tem um e somente um efeito. Porém, na prática, os problemas raramente são simples assim.
Complicando um pouco mais, temos o conceito de sistemas dinâmicos/complexos, ou seja, multi-variáveis:
O grande ponto é: se você conseguir de fato modelar todas as entradas e saídas, é possível entender melhor o que está de fato, acontecendo. Apesar de soar determinista e reducionista, deixe-me explicar meu ponto. Dado que tenhamos analisados todas as causas reais dos problemas, considerando fatores comuns a pensamento sistêmico, como ciclos de feedback com atraso e demais conceitos relacionados, dá para ter uma resposta mais adequada para alguns problemas.
A parte díficil é: entender o suficiente de um determinado sistema de uma forma que nos permita modelar o seu comportamento levando em consideração todas as variáveis relevantes.
Essa dificuldade é explicada por um conceito chamado Racionalidade Limitada. Que nada mais é que: cada agente opera dentro do sistema com informações incompletas sobre o funcionamento do mesmo. Isso leva a cenários como tragédia dos comuns, no qual indivíduos usando um determinado recurso para uso pessoal, esgotam todo o ecossistema ao levar em consideração somente suas próprias necessidades.
Dito isso, um exemplo comum desse problema nas empresas é quando uma área ou pessoa toma uma decisão pensando somente em resolver o problema daquela área em específico, sem considerar o impacto no todo. Geralmente, em culturas empresariais com foco no curto prazo e sem uma estratégia de longo prazo definida, o incentivo das pessoas é sempre em resolver a bucha da vez (ou, até mesmo, passar o problema para outra pessoa), sem resolver a causa raiz.
Tá, mas o que isso tem a ver com tecnologia?
O ciclo do hype
Todos esses pontos que irei comentar afetam o mercado de tecnologia e a percepção das pessoas. Sendo assim, imagine que surgiu uma tecnologia nova qualquer. O que acontece em relação às expectativas das pessoas é o seguinte:
Ou seja, há um período de expectativas exageradas com afirmações absurdas, como charlatões vendendo cursos prometendo ganhos irreais. Logo após o estouro da bolha, há um certo cinismo e pessimismo das pessoas, até que a tecnologia encontra finalmente seu nicho de uso. A longo prazo, se torna senso comum que aquela determinada tecnologia serve para algum caso específico e para por aí, até surgir outra tecnologia e o ciclo reinicia.
Vamos a um exemplo prático: no momento que escrevo esse artigo (Setembro de 2024), o mercado de back-end/front-end estabilizou um pouco (tanto que você não vê mais propaganda de cursos rápidos prometendo salário de 10K+ com 2 meses de estudo). Porém, o hype do momento está em dados e inteligência artificial. Isso faz surgir propagandas de cursos rápidos de análise de dados via bootcamp e similares, prometendo os mesmos salários irreais.
Em breve, a bolha de IA vai estourar também e todo esse glamour em dados vai diminuir. Dá uma olhada nas preocupações recentes dos investidores, como esse texto aqui. Um sinal de que a bolha de IA está perto de estourar será quando houver uma grande queda nas ações da NVIDIA, dado a sua dependência em seu modelo de negócio da venda de GPUs para o treinamento de modelos das Big Techs, vide essa notícia aqui, por exemplo.
Quando a bolha estourar, você verá a mesma crise que aconteceu com o mercado de desenvolvimento, porém, dessa vez em para os profissionais de dados. Alguns mais pessimistas dirão que será ainda pior que a pandemia. Enfim, em breve, veremos.
Lei de difusão da inovação
Qualquer inovação tecnologica passa por um ciclo de adoção, chamado de lei da difusão da inovação, na qual funciona com a seguinte distribuição:
Portanto, para ilustrar a ideia, vamos a um exemplo com eletrônicos. Quem compra smartphones e consoles no dia do lançamento são os inovadores (2% dos usuários). Aquele seu avô que comprou um smartphone em 2024 é considerado um retardatário nesse modelo (cerca de 16% dos usuários).
Em suma: a curva de adoção é mais ou menos parecida, não importa qual a tecnologia nova em questão. Novamente, mais um ciclo acontecendo. A lei não diz que a maioria inicial ou qualquer outra categorização irá adotar no tempo X, no entanto.
É aqui que entra o impacto nos profissionais de tecnologia.
Os sistemas não respondem rápido
Um conceito fundamental do pensamento sistêmico é a ideia de ciclos de feedback com atrasos. Ou seja, quanto mais difícil e sistêmica é a decisão tomada hoje, mais distante no tempo elas serão sentidas.
Então, o que acontece nas empresas?
Surge uma tecnologia ou prática nova (que as vezes, nem é tão nova assim), como microsserviços. Logo, começam a surgir palestras em conferências e vídeos no youtube sobre o assunto. A quantidade de cursos sobre o assunto se multiplica (afinal, há demanda pela novidade). No processo, pessoas desenvolvedoras menos experientes são afetadas por FOMO por estarem expostas a esse tipo de conteúdo.
No auge da bolha, os desonestos vendem falsas promessas. Algumas pessoas caem no golpe e acham que o problema é a profissão em si e desistem. Com o tempo, a comunidade aprende a lidar melhor com aquela técnica nova e aprende como usá-la corretamente. Ai sim, a técnica se consolida na indústria de desenvolvimento.
O grande problema é que devido aos ciclos já mencionados + o ciclo de feedback com atrasos, esse processo leva ANOS. Na maioria dos casos, no mínimo 3 anos.
A maioria das pessoas desenvolvedoras sofrendo com FOMO não querem esperar os anos para uma empresa adotar uma tecnologia e colher as consequências, sejam boas ou ruins. Em alguns lugares que trabalhei (como grandes bancos), o atraso na adoção é ainda maior, devido ao tamanho e cultura desse tipo de empresa.
Como estamos falando de modelos mentais, eu diria que para startups, o feedback da aplicação de uma tecnologia chegam em 18 meses (podendo ser até menos), em empresas médias são 3 anos e em grandes enterprises, no mínimo 5 anos.
Perceba que não há de fato uma espécie de “pressão externa” para que a evolução/adoção de uma determinada tecnologia ocorra. A única externalidade que consigo pensar que causou mudanças foi a pandemia, porém, desconsiderando isso, não houveram outras, ao meu ver.
Como o cliente não se importa com o estado da arte técnico, isso é irrelevante para o funcionamento do negócio, na prática. Logo, a empresa não tem um incentivo forte o suficiente de realmente, inovar. Obviamente que se uma empresa ainda não tem website em 2024 está com problemas. Mas, dependendo do tamanho do negócio, o restante da operação compensa esses atrasos, como grandes varejistas de alimentos que tem um e-commerce horrível, porém, as lojas físicas ainda mantém o faturamento.
No final, é todo mundo perseguindos ideias mirabolantes de tempos em tempos e se sentindo um profissional ruim no processo. É essa a causa do título desse texto.
Após um certo período, surge uma nova ideia e tudo recomeça. Lembrei do Sísifo aqui.
O que fazer, então?
Olhando para esse problema como algo multi-fatorial com causas relativamente definidas, basta atacar as causas e podemos mitigá-las.
Usando o mesmo diagrama anterior, o resumo da dinâmica discutida é a seguinte:
A solução, ao meu ver, passa por uma abordagem em que precisamos quebrar o ciclo de erros.
Assim como terapia te ajuda a não repetir os mesmos erros da sua criação e similares, existem técnicas análogas no desenvolvimento de pessoas que podemos aplicar para que elas consigam ser empoderadas a não cometer os mesmos erros de quem as formaram.
A principal delas é: não promover os melhores técnicos a cargos de gestão.
Isso passa por criar caminhos para que uma pessoa desenvolvedora Senior tenha para onde crescer nas empresas sem precisar ser gestor. Eu estou falando de career ladders com cargos como Staff, Principal, Distinguished e correlatos.
Na prática, os cargos técnicos e gerenciais seriam equivalentes (inclusive, nos salários também):
Porque um diretor ganha 40K+ e um principal engineer hiper experiente que tem 20+ anos como técnico não deveria ganhar igual? Afinal, geralmente são esses tipos de profissionais que resolvem os grandes problemas, que envolvem mudanças estruturais significativas que impactam múltiplos times.
O principal erro das empresas é promover bons técnicos achando que serão bons gestores de pessoas. São competências diferentes!
Pela minha experiência, a proporção 50% técnico 50% gestão costuma ser muito rara nos gestores, dado a natureza da função. Afinal, se você é sobrecarregado de reuniões inutéis e o que importa é política corporativa, não sobra tempo para adentrar nos detalhes técnicos. Além disso, por um viés de seleção, só fica na cadeira de gestão em tecnologia quem não se importa com esmero técnico (porque são as pessoas que lidam bem com rotinas assim). Para ilustrar: imagine uma pessoa que tem perfil para praticar esportes radicais sendo confinada em uma rotina previsível. Ela vai sair logo, certo? Só vai ficar quem tolera isso. Esse é o víes de seleção.
Se você não tem desafios técnicos relevantes acontecendo naquela cultura empresarial, não espere que os gestores sejam bons técnicos.
São esses os profissionais (Staff+ e gestores com perfil adequado) que quebram o ciclo de erros. São eles que costumam ser inspiradores e fazem as pessoas ficarem nas empresas. Que entendem o ciclo do hype e da difusão da inovação e tomam decisões técnicas embasadas que resistem ao teste do tempo. Que não aplicam pressão desnecessariamente deixando as pessoas doentes.
Na prática, é a experiência sólida que costuma resolver boa parte dos problemas em tech. Pergunte-se: quando foi a última vez que você trabalhou com alguém que tinha 50 anos ou mais e era técnico? Se você está lendo isso e acha que essas pessoas não dão conta do recado por serem velhas demais, isso tem nome, a propósito.
Fazer software é caro. Fazer errado, é ainda mais caro. Portanto, economize pagando bem para os perfis certos. Esse é o paradoxo fundamental da área de tecnologia que muitos empreendedores e gestores se recusam a aceitar.
TL;DR
- Modelagem Sistêmica: Os problemas na TI são complexos e multi-variáveis, exigindo uma abordagem sistêmica. A racionalidade limitada leva decisões empresariais a se concentrarem no curto prazo, sem considerar o impacto global.
- Ciclo do Hype: Novas tecnologias seguem um ciclo de exagero, decepção e eventual estabilização. O hype inicial gera promessas irreais, e quando a bolha estoura, os impactos afetam os profissionais da área.
- Lei da Difusão da Inovação: Toda tecnologia segue um ciclo de adoção, desde os inovadores até os retardatários, o que impacta diretamente a percepção e adoção nas empresas.
- Feedback Atrasado: A adoção de tecnologias em empresas é lenta, levando anos para se consolidar. Startups adotam mais rápido, enquanto grandes empresas demoram mais para sentir os efeitos das decisões técnicas.
- Problemas de Gestão: A promoção de bons técnicos a cargos de gestão muitas vezes é um erro. Cargos técnicos e de gestão deveriam ter progressões paralelas, com salários e desafios proporcionais.
- Experiência Técnica: A experiência de profissionais sêniores é essencial para quebrar ciclos de erros na TI. Empresas deveriam valorizar mais a expertise técnica de uma maneira geral.
Espero que esse texto seja útil para você de alguma forma.
Até!
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