Uma reflexão sobre sistemas de incentivos
Olá!
Talvez esse texto seja óbvio para você. Talvez não. De qualquer forma, acho que entender o dito “óbvio” sobre como empresas funcionam, precisa ser sistematizado para ser melhor entendido. Com isso, espero que o entendimento adquirido, você não se desgaste tanto ao se deparar com algumas contradições que tipicamente ocorrem nas empresas.
Vamos começar com uma situação hipotética relativamente comum:
Em uma empresa de produto digital, três talentosos profissionais, Bruno, Alice e Carlos, foram encarregados de desenvolver um novo aplicativo. Bruno era o designer, Alice a desenvolvedora e Carlos cuidaria do marketing.
Cada um deles desempenhou suas funções com maestria. Bruno criou um design incrível, Alice programou o aplicativo sem erros e Carlos lançou uma campanha promocional empolgante. No entanto, quando o aplicativo foi finalmente lançado, foi um fracasso total.
O que deu errado?
Antes de responder a essa pergunta, é importante definir alguns conceitos fundamentais. A maioria das empresas (e consequentemente seus gestores), estão sujeitos a um conjunto específico de recompensas e punições destinadas a moldar o comportamento deles. Esse conjunto de mecanismos é conhecido como Sistema de Incentivos, um tópico amplamente estudado em Economia e Administração. A definição é a seguinte:
Sistemas de incentivos são utilizados pelas empresas como ferramenta que desempenha função motivacional de induzir o comportamento dos gestores gerando alinhamento dos interesses da organização e dos gestores, para o alcance de determinado nível de desempenho.
Fonte: Daqui.
É possível extrapolar a ideia e criar algumas classificações mais elaboradas, como separar os incentivos em monetários ou não monetários, como na imagem abaixo:
Portanto, a partir dessas definições, é possível deduzir, analisando a teoria, que é do interesse do acionista (ou seja, o dono do capital) que os gestores que trabalham naquela empresa busquem o sucesso da empresa. Assim, se a empresa lucra, o gestor lucra (por meio de incentivos monetários ou não monetários) e consequentemente, os demais funcionários também lucram (porém, em uma escala menor).
De certa forma, se a empresa está operando de forma saudável, é comum pensar que o emprego de todos os envolvidos está relativamente seguro. Afinal, se eu faço a empresa ganhar dinheiro, não há motivo para eu ser demitido, certo?
Agora, vamos analisar o que geralmente dá errado nesse tipo de arranjo.
Vamos começar com um modelo mental do que é uma empresa em si.
No caso de uma empresa digital (popularmente conhecida como Empresa de Produto), temos o seguinte modelo comum de departamentos:
Podem existir inúmeras variações e departamentos que poderiam existir nesse modelo, dos quais deliberadamente eu deixei de fora. Portanto, para fins de simplificação, vamos seguir somente com esses mesmos.
Se os modelos propostos estiverem muito diferentes de onde você trabalha, pode ser que o seguinte aconteça: o trabalho a ser feito existe, mas está incorporado em algum outro lugar (ex: a diretoria de dados pode estar subordinada ao marketing ou a tecnologia) ou simplesmente a empresa em que você trabalha pode não estar no nível específico de maturidade em gestão para criar um departamento para um determinado assunto.
Eu propus esse modelo para que você tenha um ponto de partida para enxergar os departamentos como um sistema. Caso o assunto seja novo para você, recomendo dois textos sobre o tema como ponto de partida: este e este.
Partindo dessas premissas (modelo mental de uma empresa como um sistema e sistemas de incentivos), voltamos à pergunta principal: por quais motivos as empresas parecem ser caóticas e fontes de sofrimento para muitas pessoas, sendo que todos os departamentos supostamente trabalham para um objetivo comum?
Apesar de cada um dos departamentos terem descrições que podem ser aspiracionais e rebuscadas, vou seguir com a descrição real de cada departamento, considerando os problemas comuns que as áreas enfrentam:
Pense em cada situação minimamente injusta que você presenciou nos lugares em que trabalhou. A injustiça foi percebida apenas pelos funcionários, pois na visão da empresa, o departamento fez o que deveria fazer.
Seja em uma situação de assédio na qual o RH, na sua visão, não agiu. O departamento agiu sim: ele protegeu os acionistas de você, o funcionário que denunciou o problema. Quando o time de atendimento está sobrecarregado devido a falhas em outros departamentos, ele está fazendo o que foi projetado para fazer: proteger os acionistas de se aborrecerem com as reclamações dos clientes.
Em alguns casos, o mecanismo de prevenção entra em ação corretamente e impede um projeto do time de produto com falhas de compliance que é barrado logo no início do desenvolvimento pelo jurídico. Se você faz parte do time de tech ou produto, você provavelmente achará que o departamento de compliance é, na verdade, um departamento de prevenção ao crescimento (uma piada que já ouvi algumas vezes). No entanto, considerando o impacto do projeto disfuncional no funcionamento da empresa, o compliance está correto em interromper o projeto antes que cause mais problemas.
E aqui entra um dos pontos principais deste texto: cada departamento possui um sistema de incentivos diferente, levando em consideração as particularidades de cada área. Ao interagirem entre si, os conflitos começam a surgir, pois cada departamento age de acordo com um incentivo diferente.
Essa é a principal razão pela qual algumas empresas não prosperam como deveriam. Provavelmente, é porque os departamentos não estão trabalhando para o sucesso da empresa, mas sim para o sucesso individual do diretor. Também explica parcialmente o motivo de algumas promoções parecem injustas. Neste caso, provavelmente a pessoa promovida fez exatamente o que o gestor pediu, pois a promoção de alguém é sempre um sinal de aderência a cultura da empresa, por mais que a cultura pareça errada para você.
Por fim, são os sistemas de incentivos que explicam por que uma empresa não faz nada em relação a um problema específico que afeta apenas uma área (geralmente, o atendimento). Nesse caso, o incentivo financeiro é simples: é mais barato lidar com o adoecimento das pessoas no atendimento do que investir em tecnologia ou produto para solucionar o problema (pelo menos é assim que alguns gestores pensam).
Ao analisar essas dinâmicas, elas parecem erradas se você se preocupa minimamente com pessoas. Embora eu acredito que práticas simplistas assim saiam mais caras e sejam piores no final das contas, infelizmente esse tipo de pensamento não é muito comum em gestão.
Considerando tudo o que foi dito até agora, para responder à pergunta inicial sobre o que deu errado na situação hipotética, temos:
Apesar de cada pessoa (ou departamento) ter feito seu trabalho corretamente, alguém esqueceu de olhar para o todo, em vez de somente uma parte.
A mesma resposta (olhar para o todo) é encontrada em várias áreas diferentes, seja na agilidade (com a frase: foque no ótimo global em vez do ótimo local), na Teoria Y (gerencie os sistemas e não as pessoas) ou simplesmente na frase do William Edwards Deming, que diz que somente 6% do resultado de um sistema vem de ações individuais.
Portanto, antes de propor uma solução que resolva somente o seu problema, pense no impacto disso no todo. Somente com ações pensadas para resolver as causas estruturais de um problema que é possível causar mudanças reais. Obviamente, usei exemplos empresariais aqui, mas isso se aplica a qualquer coisa, seja em sua vida social, política ou algo semelhante.
Espero que o texto tenha sido útil para você de alguma forma :)
Até!
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